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joaorios46

A sensibilidade eterniza o artista






Fotógrafo não identificado. Frente e verso


Esta é a fotografia mais antiga da minha família. É meu bisavô materno em provável 1880, oito anos antes da Lei Áurea.


Ao encontrar esta fotografia tive duas alegrias. Primeiro foi conhecer meu bisavô. Sempre correu na família que ele era muito rico e dono de escravos. “Mas aquela mulher arruinou a vida dele”, disse mamãe, neta dele, desdenhando da Princesa Isabel que libertou os escravos e realmente causou grande prejuízo aos donos de carne humana viva.


A outra grande alegria é ter na minha casa uma fotografia de quase cento e cinquenta anos. Sinto que moro num museu. Já ouvi alguns filósofos dizerem que um escritor não morre, pois a obra dele o mantém vivo. Igualmente eterno é o fotógrafo, esse escritor com luz.


Eu trouxe esta foto porque ela mexeu comigo. É este mexer com os sentimentos do espectador que eterniza autores como o desta fotografia. Merece elogios o fotógrafo que fez posar um senhor dono de escravos, que pela natureza do negócio, deve ter sido muito cruel com os negros e agora se apresenta cheio de ternura valendo-se da beleza de uma planta para compor essa imagem. Realmente encanta indivíduos de qualquer cor de pele.


Não sei se ele foi cruel com suas mercadorias que falavam, sorriam e choravam. Açoitava-os? Permitia algumas regalias aos escravos? Teve filhos ilegítimos com escravas? Teria ele emparelhado suas mercadorias e as fotografado para exibir seu plantel aos outros senhores? Qual a história da foto, onde foi tirada ou em que situação são questões que aguçam meu imaginário. São perguntas que ficarão sem respostas pois não encontro mais ninguém vivo para me esclarecer essas dúvidas. Certeza de que a morte virá para todos.


A sensibilidade do fotógrafo mexeu com meus sentimentos. É esta sensibilidade do artista que nos leva para dentro da obra de arte. Não se trata de composição, iluminação ou qualquer outra técnica. A sensibilidade não se ensina nem se aprende, ela nasce com o indivíduo, habita na alma, basta que seja despertada. Não é da educação cumulativa de fora para dentro que nasce a sensibilidade. Não é por estarmos de posse de um instrumento que nos leva a tirarmos o melhor proveito dele. Dois fotógrafos formados na mesma escola, usando os mesmos equipamentos irão fazer trabalhos totalmente diferentes por causa da sensibilidade que habita suas almas.


Um escultor pode iniciar sua estátua e não estabelecer um tempo para terminá-la. Um pintor pode dedicar a vida a uma imagem na sua tela e nunca dar por acabada. O fazer fotográfico se diferencia das outras artes devido ao seu processo instantâneo de registro. No instante do clique o fotógrafo não tem como mexer na imagem. Ainda que use filtros para alterar as aparências ou papeis especiais para causar ilusão de que o que está impresso é superior ou diferente do que fora retratado, todos esses recursos são ilusões para atender a uma demanda vinda do mundo exterior para atender os conceitos e definições de arte do momento.


O fotógrafo só conseguirá tirar o melhor de sua câmera escura se entregar o melhor de si. Se alma dele não for mexida, revirada, bulinada, ele não conseguirá mexer, revirar e bulinar a alma do espectador.


Posar um senhor de escravos contracenando com uma planta é de rasgar elogios sobretudo na época desta foto em que as câmeras demoravam alguns minutos para registrar o cliente.


Fica também a lição do quanto é importante revelarmos nossas fotografias. Se alguém não tivesse pagado por esta foto eu não teria conhecido meu bisavô e talvez não tivesse revelado esta história.


Buscamos em cada obra de arte que visitamos a ligação arrebatadora com o celestial. É digno de todas as honras e alcança a eternidade o artista que consegue nos remeter a um mundo onde nossas percepções sensoriais se agitam.


“À arte não importa como a vemos, mas como a vemos”.

( Frase do filme retratos de uma guerra.)


Não explicamos o encantamento. Quando ele se mostra revela arrepios incontroláveis. A arte que consegue esta façanha atravessa os séculos e imortaliza o autor.


João Rios Mendes Agosto 2021

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